
O moralismo das notas da ABP contra a cannabis medicinal

Artigo que publiquei no portal Jota.info em setembro de 2023 que trata sobre o tema da cannabis medicinal e da visão reducionista de muitos psiquiatras em relação às drogas.
O moralismo das notas da ABP contra a cannabis medicinal
Desde o início de 2019, nunca encontrei qualquer manifestação por parte da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) que fosse contrária às medidas de flexibilização do acesso às armas adotadas pelo governo Bolsonaro. Como os psiquiatras podem deixar de se posicionar sobre esse assunto, quando é precisamente o controle das armas que constitui uma das medidas mais efetivas de prevenção ao suicídio? Por outro lado, a ABP patrocina a polêmica campanha do Setembro Amarelo. Até hoje debatemos se uma campanha como essa de fato previne ou promove o comportamento suicida. De todo modo, ela certamente favorece o mercado da psiquiatria.
Em julho de 2022, a ABP divulgou um posicionamento agressivo contra a possibilidade de prescrição de cannabis medicinal no contexto psiquiátrico. É verdade que não existem evidências científicas robustas que embasem essas prescrições, mas o mesmo ocorre com diversos tratamentos psiquiátricos consagrados. De fato, é muito comum na prática psiquiátrica a prescrição de tratamentos off label, ou seja, sem a aprovação formal por parte de agências regulatórias como a Anvisa.
Defendo que um psiquiatra deva ser cauteloso quanto à prescrição de tratamentos off label. Muitos vieses influenciam a nossa percepção sobre o resultado de um tratamento. Podemos falar do efeito placebo, mas creio ser mais importante a compreensão de que a maioria dos transtornos mentais apresenta uma evolução oscilatória: há momentos de piora e de melhora. Claro que o tratamento é mais procurado no momento de piora, logo, é muito provável que boa parte da melhora percebida pelos pacientes e pelos médicos não tenha tanto a ver com o tratamento em si, mas diga mais respeito ao curso flutuante daquele transtorno mental. Contudo, isso não é motivo para deixarmos de acolher e propor um tratamento para as pessoas acometidas por significativo sofrimento decorrente de um transtorno mental. Assim, se for pertinente prescrever um tratamento de eficácia incerta, devemos colocar na balança os riscos do tratamento e a gravidade do transtorno mental.
Se a ABP fosse coerente em seus posicionamentos, antes de condenar a cannabis medicinal, criticaria, por exemplo, a prescrição indiscriminada de quetiapina, uma medicação amplamente utilizada em indicações off label para o tratamento de transtornos mentais comuns como ansiedade e insônia e que frequentemente causa problemas metabólicos como ganho de peso, dislipidemia e diabetes. Um estudo recente demonstrou que mesmo em baixas doses, esse antipsicótico, essencial para o tratamento do transtorno bipolar e de outras condições graves (nesses contextos, o benefício potencial é indiscutível), está associado a um aumento na incidência de acidentes vasculares cerebrais e de mortes por causas cardiovasculares. Como conclusão, os pesquisadores desencorajam a sua prescrição off label.
Nitidamente, o posicionamento da ABP contrário à prescrição psiquiátrica de derivados da cannabis tem muito menos a ver com uma eficácia questionável e riscos concretos e muito mais a ver com o fato de essas substâncias remeterem a uma droga frequentemente utilizada para fins recreativos. Podemos constatar a exagerada carga moralista em relação à maconha em uma das últimas notas da ABP, desta vez assinada em conjunto com o Conselho Federal de Medicina (CFM). Às vésperas da decisão do Supremo Tribunal Federal que decidirá pela descriminalização do consumo da maconha, duas importantes entidades médicas se posicionam contrariamente. Tenho certeza de que tal posicionamento padecerá insignificante em termos práticos, mas é crucial identificar e responder aos preconceitos que nos trouxeram até aqui.
Sempre que o debate sobre as drogas inclui psiquiatras, não podemos nos desvencilhar da polêmica relação entre o uso de substâncias e os transtornos mentais graves, particularmente a esquizofrenia. Antes de mais nada, é preciso ressaltar: a maioria das pessoas que usa drogas (com exceção do tabaco) não se torna dependente e a maioria das pessoas que usa drogas não apresenta sintomas psicóticos. Contudo, muito provavelmente devido ao viés de disponibilidade, boa parte dos psiquiatras parece acreditar no contrário. De fato, existe uma fortíssima relação entre o uso de drogas e os transtornos mentais graves, mas essa relação é muito mais complexa do que normalmente enunciamos.
Uma explicação simplista e unidimensional é mais palatável e atraente, principalmente quando reforça nossos preconceitos. Esse pode ser o principal fator responsável pela tendência de superestimarmos o papel das drogas tanto na gênese quanto na descompensação dos transtornos mentais graves.
É verdade que o uso nocivo de drogas pode piorar muito a saúde mental, principalmente das pessoas mais vulneráveis, mas ele também é consequência tanto da doença mental, quanto da própria vulnerabilidade psicossocial. Quero dizer com isso que, sim, o uso de algumas drogas, notadamente a maconha, pode causar descompensações psiquiátricas. Contudo, essa não é a única, nem a melhor explicação para a fortíssima correlação entre o uso de drogas e os transtornos mentais graves. Hoje sabemos que as predisposições para a esquizofrenia e para a dependência química compartilham substratos genéticos em comum, sem falar nos fatores ambientais, muito relacionados à vulnerabilidade social e às adversidades de vida.
Em minha experiência como psiquiatra, percebo uma certa displicência em relação à oferta de tratamento para pacientes com transtornos mentais graves associados a transtornos por uso de substâncias psicoativas. Isso por si só é muito sério, mas se torna ainda mais desconcertante quando nos lembramos que a maioria das pessoas com transtorno mental grave também apresenta um consumo significativo de drogas, incluindo o álcool. (Recapitulando: a maioria das pessoas que usa drogas não fica psicótica, mas a maioria das pessoas acometidas por um transtorno psicótico usa drogas). As razões para isso são aquelas acima mencionadas: um sistema imbricado que não permite uma simplificação em uma relação de causalidade unidirecional.
O tratamento adequado dos transtornos mentais graves é de suma importância para a reabilitação psicossocial de todos os pacientes por eles acometidos, havendo ou não consumo de drogas associado. Estratégias com foco na diminuição do uso de drogas vem logo em seguida, pois dependem da melhor estabilidade possível da pessoa acometida por um transtorno mental grave.
O tratamento da dependência química é desafiador, mas abordagens multidisciplinares alicerçadas em práticas de saúde mental comunitária, como aquelas oferecidas pelos Centros de Atenção Psicossocial, fazem grande diferença, principalmente por oferecerem cuidado integral. Ao psiquiatra, não cabe tentar combater o acesso às drogas, pois tal estratégia, além de ineficaz, pode piorar ainda mais as adversidades encaradas por nossos pacientes. Essa proposta pode ser considerada o extremo oposto daquela apregoada pelo psiquiatra Quirino Cordeiro Júnior, diretor do Hub de Cuidados em Crack e outras Drogas, que em publicação do Conselho Regional de Medicina de São Paulo, insiste no combate ao acesso às drogas como estratégia prioritária de enfrentamento desse gravíssimo problema de saúde pública.
Para avançarmos no debate sobre o problema das drogas, é essencial nos afastarmos de convicções moralistas. Uma pessoa que sofre prejuízo pelo consumo de drogas precisa de cuidado, não de repressão. Quem sabe um dia os médicos possam se preocupar mais em cuidar das pessoas do que em aplaudir o “presidente que não era coveiro”, como fizeram vários integrantes do CFM, mesmo após tudo o que o Brasil passou durante pandemia da Covid-19, ou fomentar preconceitos que sustentam um genocídio, como fazem agora os dirigentes da ABP e do CFM. Digo isso porque a criminalização do consumo de drogas, incluindo todas elas, inevitavelmente contribui para a perpetuação da violência, especialmente contra a população pobre, preta e marginalizada, e em nada favorece a promoção da saúde
NEXUS MEDICINA E PSIQUIATRIA LTDA
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